Este texto é o início de uma jornada de retorno a crítica de cinema. Desde o fim de minha parceria com o saudoso site Razão de Aspecto que deixei de fazer críticas de filmes.
Como 2024 é o primeiro ano de minha aposentadoria e tenho tempo de sobra, volto a me disfarçar de crítico de cinema. Mas agora pretendo corrigir diversas lacunas de minha formação de cinéfilo. Para tanto, vou começar analisando a lista dos 100 melhores filmes da história, de acordo com uma votação de 480 diretores de cinema.
A lista foi realizada em 2022 pelo British Film Institute. A cada 10 anos eles realizam esta votação entre os principais diretores em atividade. Confira a lista de 2022 aqui: https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/directors-100-greatest-films-all-time
A cada 3 dias farei a análise de um dos filmes da lista, começando pelos últimos colocados, os 12 filmes empatados na posição 93. Contando eventuais falhas e atrasos, espero que até o final de ano tenha completado a lista.
E depois de minha análise tentarei, de forma forma trôpega e incompetente, dar uma pontuação a cada filme seguindo alguns critérios. E no final do ano compararei as pontuações e verificarei o quanto discordo da lista de quem entende muito mais que eu. Mas claro, eu estarei certo no final.
Vamos ao primeiro (a ser analisado) e último (empatado com mais 11) da lista.
Trono Manchado de Sangue
Preparação:
Muitos dos filmes da lista do BFI são "exóticos". De culturas muito diferentes, de épocas diferentes, de gêneros que não me agradam. E todos eles foram influenciados e influenciaram diversas outras obras. Por isto, um dia antes de assistir cada um dos filmes eu tentarei me "preparar" para o filme, e não simplesmente ser jogado em uma experiência artística completamente fora de minha zona de conforto.
Para "Trono manchado de sangue" a preparação foi relativamente simples. Primeiro por que eu já havia visto o filme na década de 1990, em uma tela pequena, som ruim e imagem qualidade VHS. E mesmo assim lembro de ter amado a experiência. Então eu já conhecia o que iria rever.
Trono Manchado de Sangue é uma adaptação da peça Macbeth, de Shakespeare, so que transposta para o Japão no período Sengoku. Escolhi então conhecer um pouco melhor a peça.
Para tal no dia 01/01/2023 deu uma relida no texto original, na critica de Harold Bloom que consta no livro "Shakespeare, a invenção do humano" e vi o filme "A tragédia de Macbeth", de 2022 (recomendo, nota 4/5).
E sentei em frente a TV no dia 02/01/2023 esperando assistir a versão japonesa da peça mais aterrorizante do bardo. Para quem não conhece a trama da peça, um breve resumo.
Um nobre escocês, ao retornar de uma bem sucedida campanha militar, recebe uma profecia de uma figura sombria: um dia ele se tornaria rei.
Tomado pela ambição, e pela influência de sua esposa, Macbeth toma um caminho de sangue para transformar profecia em realidade, o que o leva a completa ruína.
O peso dramático da peça se deve a incrivelmente humana e convincente mistura de desejo, ambição, destino e inevitabilidade. Macbeth nos assombra não pelo que ele faz, mas por entendermos o que ele deseja, e percebermos a inevitabilidade do desejo sobre a realidade. Não se trata de um relato de culpa e castigo, e sim algo muito pior que isto. Se trata de um homem confrontando a si mesmo, e só se encontrando em sua completa ruína.
Como então o filme de Kurosawa se sai diante deste desafio, de recontar tal fábula no contexto de um Japão tão desconhecido para nós? Com primazia
A primeira imagem que surge no filme já introduz o elemento visual principal: a neblina. Kurosawa usa da neblina durante todo o filme, trazendo toda a beleza mística, da luz que obstrue a visão, do enxergar e ao mesmo tempo não ver. Para uma história que se passa tanto nas ações quanto principalmente nas ambições, a escolha se mostra muito acertada.
Toda a fotografia e figurinos, maquiagem e até movimentos das persoganes dá um tom de irrealidade, de caricatura, de um mundo quase real. A estética do teatro Nô é marcante, o que pode gerar uma certa estranheza para nós, ocidentais, mas que superado o choque cultural se torna parte essencial da atmosfera do filme. Muitas vezes os rostos, com maquiagens pesadas, bem como com a interpretação propositalmente quase histriônica faz das faces quase que máscaras teatrais. Há relatos de Kurosawa ter pedido a Toshiro Mifume (que interpreta Taketori, o correspondente a Macbeth no filme) e Isuzu Yamada (que faz Asaji/Lady Macbeth) a não piscarem durante as cenas.
Isto ajuda a dar uma teatralidade japonesa muito presente no filme, em substituição a poética shakespereana. Ao contrário das maiorias das adaptações de peças do bardo, Kurosawa optou por não colocar nenhuma linha do texto original, nem algo no mesmo estilo. Não temos grandes monólogos em verso nem nada similar, e sim diálogos curtos, quase militares. Mas se as falas não são teatrais, os gestos e expressões o são em grande intensidade.
A presença do sobrenatural, tão importante em Macbeth, aparece de forma diversa do original. Não temos a figura triuna de Hecate, mas um espírito maligno andrôgeno destacadamente branco, ao invés de sombrio. Contudo os calafrios que esta presença gera continua muito similar ao original. E assim como em Macbeth, a grande dúvida permanece. A profecia impulsiona a ambição de Macbeth, ou apenas a confirma? O destino vem externo ou interno ao humano? O desejo de Macbeth é pela coroa ou por sua própria ruína?
A sensação final é de uma inevitabilidade trágica, de um homem condenado por sua própria imaginação, ciente da inevitabilidade de sua própria espiral destrutiva e suas consequências.
SPOILERS A PARTIR DE AGORA
A grande diferença entre Macbeth e Trono Manchado de sangue é seu final. Na Escócia shakespereana Macbeth encontra sua ruína nas mãos do seu sucessor, Macduff, em um duelo entre o tirano e o merecedor da coroa. Macbeth mata o rei em um ato de cobiça e traição. Macduff mata o rei usurpador não em um ato de traição, e sim de vingança justificada. Mas a sensação final após a decapitação do rei usurpador não é de libertação ou alívio, e sim de confirmação da tragédia e do horror.
Em Trono manchado de Sangue Taketori não morre na mão de seu sucessor, e sim de seus súditos. Após seu povo perceber que as profecias que o protegiam agora confirmam sua queda, seus próprios soldados se voltam contra seu senhor. É uma repetição da traição do vassalo que mata o suserano, mas agora em um ato coletivo, impessoal, quase que natural. Não é mais uma vingança, mas sim uma repetição do primeiro ato, só que movida não pela ambição, e sim pelo medo e fúria.
A cena em que Taketori se torna uma almofada de flechas diante de sua tropa esta entre as cenas mais dramáticas já filmadas, com uma interpretação corporal extrema de Toshiro Mifume. Ficará marcada em minhas retinas como mais uma das cenas eternas do cinema.
Avaliação final:
Esta parte da crítica tem por objetivo dar uma pontuação final ao filme, na minha análise, e ao final, reordenar a lista de acordo com a minha visão. Serão considerados 6 quesitos, com notas de 1 a 5.
DIREÇÃO: Kurosawa leva sua concepção artística em cada cena, em cada tomada, angulo de câmera, cenário, etc. 5/5
ROTEIRO: o que parecia ser impossível foi feito. Uma peça de Shakespeare sem seus diálogos poéticos, e uma transição da Escócia para o Japão produziram talvez a melhor adaptação de Shakespeare para o cinema. 5/5
PRODUÇÃO: cenário, figurinos, cortes, trilha sonora, tudo simplesmente impecável. 5/5
ELENCO: Toshiro Mifume carrega o filme nas costas, e arremessa em nossos colos com violência. Das interpretações mais impactantes que já vi. Mas há algumas atuações menores entre os coadjuvantes. 4/5
IDENTIFICAÇÃO PESSOAL/ENTRETENIMENTO: Um filme absolutamente delicioso e que vai entrar na minha lista de filmes a serem repetidamente revistos. 5/5
ATEMPORALIDADE/UNIVERSALIDADE: O poder da humanidade trágica de Macbeth faz desta história universal e atemporal, mas a transposição para o imaginário japonês e a estética do Teatro Nô pode gerar estranheza em parte do público ocidental. 4/5
Nota final: 28/30
Aguardem para o dia 06/01/2023 a crítica de Brilho eterno de uma mente sem lembranças.