Armas. A tese inicial do bolsonarismo era que armar o cidadão de bem permitiria a ele se defender do bandido, do marginal. Contrariando quase todos os estudos de segurança pública no mundo, o bolsonarismo defende que armas são uma forma de defesa e diminui a violência. Mas isto é uma clássica manobra de oferecer uma resposta simples para problemas complexos. As causas da violência são muito mais complexas
Recentemente Eduardo Bolsonaro discursou em um evento pró-armas que a queda dos homicídios no Brasil no ano de 2021 era uma conquista do governo Bolsonaro. Infelizmente o deputado esqueceu de comentar que esta queda no número de homicídios começou em 2018, último ano do governo Temer. Em 2019 houve nova queda, mas estranhamente em 2020 o número de homicídios no Brasil sobe novamente. E em 2021 tivemos uma queda bastante significativa.
Se fosse resultado do maior número de armas de fogo na população, o que deveríamos observar era uma queda pequena em 2019, quando a política de facilitação de acesso as armas começou, e a queda ir acelerando em 2020 e 2021. Como não foi isto que ocorreu, devemos concluir que no mínimo outros fatores influenciam no problema.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ao analisar os dados do Atlas de Violência do IPEA chegou no seguinte diagnóstico: a atual queda de homicídios no Brasil se deve principalmente a uma trégua entre as facções do narcotráfico, em especial entre o Comando Vermelho e o PCC. Ou seja, apesar da notícia ser excelente, não se trata de uma diminuição da criminalidade, e sim uma reorganização do crime organizado. Por exemplo em São Paulo teve uma enorme queda de homicídios porque o PCC extirpou toda a concorrência no estado. O que não é exatamente uma coisa boa.
O número de homicídios por ano não conta toda a história. Há outros dados a se considerar. Por exemplo, o número de assassinatos de homens negros subiu em 2021. Outro dado desencorajador é que o número de mortes violentas sem causa definida aumento significativamente. Ou seja, pode ser que estejamos com uma subnotificação de homicídios. Temos ainda a polícia mais violenta do mundo, a que mais mata e que mais morre. E ambos os números, de mortes de e por policiais, continuam subindo.
Temos ainda uma migração da violência. Enquanto nos grandes centros urbanos o número de homicídios caiu, na Região Norte subiu de forma significativa. Vale comentar que a região norte é uma das regiões com mais armas do Brasil.
Se formos olhar os estudos acadêmicos sobre o tema vemos que a maioria aponta que mais armas aumentam, e não diminuem, o índice de violência urbana. O que não é muito difícil de entender. Armas não são instrumentos de defesa, e sim de ataque. Podem ser utilizadas como instrumento de contra-ataque ou de ataque preventivo, mas não é um instrumento de defesa.
A sensação de segurança que uma arma dá a seu portador não é apenas uma sensação de segurança, mas uma sensação de poder. A busca de se armar é alimentada pela desumanização do criminoso. No fundo muitos que se armam desejam punir quem ele considera uma ameaça a sociedade. Não é um instrumento de defesa, mas de catarse da raiva.
Contudo o governo Bolsonaro passou a usar um segundo argumento para armar a população. Um argumento muito mais preocupante. “Um povo armado jamais será escravizado”. Seguindo um clássico discurso americano o bolsonarismo defende que armas de fogo são uma garantia para o cidadão se defender contra um governo autoritário.
Curiosamente as mesmas pessoas defendem o argumento de que o golpe de 1964 se justificaria para combater a luta armada do povo brasileiro (invertendo causa e consequência). O que mostra que na verdade o bolsonarismo entende por povo os próprios bolsonaristas. Bolsonarista armado é cidadão de bem. Outros que venham a combater o governo com armas são terroristas.
É comum no bolsonarismo usar de revisionismo histórico como falar que Hitler teria desarmado a população, o que mostraria que ditadores querem desarmar seu povo. Contudo estas pessoas esquecem de comentar que Hitler só desarmou a população quando do início da Segunda Guerra, época que a necessidade bélica do governo era gigantesca.
Antes disto os nazistas fizeram o exato oposto. Criaram uma milícia armada, os stormtroopers da S.A.. Todo movimento de características fascistas armam a população civil e criam grupos paramilitares como um braço armado de sua política. O exemplo clássico seria os Camisas Marrons na Itália. Aqui no Brasil tivemos os Camisas Verdes, os Integralistas na década de 1930.
Mas se quiser um exemplo de esquerda, que tal a Venezuela? Hugo Chavez criou a Milícia Nacional Bolivariana, primeiro na informalidade, depois oficializada. Era os “cidadãos de bem” na ótica chavista armados para garantir pela força que ideias e pessoas perigosas ao regime fossem combatidas.
A ideia de armar a população é uma ameaça a um elemento importante ao Estado Democrático de Direito, o Monopólio da Violência. O conceito é que apenas o Estado teria a legitimidade de usar de violência, desde que o uso dela seja para garantir a segurança pública, a obediência a lei e a punição de infratores. Esta é a diferença de um policial armado e um cidadão armado. O policial tem o controle público dos limites de violência que poderá usar.
Apesar de haver circunstâncias legítimas nas quais um civil pode ter acesso a armas, generalizar o acesso é permitir a criação de grupos armados fora do controle do Estado, o que ameaça o monopólio da violência. Em especial quando o uso da arma tem viés político. Milícias armadas intimidando ou executando opositores políticos é o tipo de coisa que pode nos transformar em uma gigante Venezuela.
E hoje temos grupos de CACs e Clubes de Tiro, em imensa maioria com um perfil político específico, comemorando a capacidade de se armarem. Parte destes com ligações as milícias cariocas e aos grupos de extermínio. E pior, o Exército perdeu a capacidade de monitorar quem tem armas e munições, tanto por flexibilizações legais quanto por dificuldades administrativas. Hoje temos mais armas em mãos civis do que em mãos das forças de segurança pública. E sequer sabemos quem são estes civis armados.
É neste contexto que o assassinato de Marcelo Arruda é especialmente preocupante. Bem como o número de simpatizantes do governo dispostos a repetidamente ameaçar o rival nas eleições. Estamos em um estágio inicial de algo que poderá vir a ser a criação de uma milícia armada bolsonarista. De homens armados dispostos a intimidar, ameaçar e matar quem discordar de sua visão política. Espero estar enganado.