Aniello Greco
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Não existe negacionismo inofensivo
Não existe negacionismo inofensivo

No dia 27 de junho de 2022 o canal da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo foi suspenso pelo YouTube por sete dias, devido a um dos deputados estaduais de São Paulo ter usado o canal para divulgar um documentário que divulgava negacionismo científico em relação a pandemia de Covid 19. Apenas mais um exemplo recente da enorme onda de negacionismo que tivemos que conviver durante a pior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos.

No início da pandemia, lá por março e abril de 2020, eu e muitos entusiastas da ciência pensávamos que apesar da tragédia se vislumbrava, ao menos a humanidade iria aprender da pior forma o valor da ciência. E que com isto a recente onda de fatos alternativos e fake news iria entrar em decadência.

Ledo engano. Mesmo as custas de milhões de mortos todo tipo de negacionismo contaminou o combate a pandemia. E não apenas em lugares periféricos, como também nas sociedades mais instruídas do mundo. Exemplo maior foi o Presidente dos Estados Unidos à época adotar o uso de remédios comprovadamente ineficazes e se opor ao uso de máscaras e as medidas de distanciamento social. Juntando a isto o já influente movimento anti-vacina, o país mais rico do mundo foi também o que sofreu o maior número de vítimas do vírus.

Se mesmo em uma situação relativamente simples, óbvia e com esforço mundial para esclarecimento as teorias anticientíficas proliferaram, imagine o quanto ideias anticientíficas proliferam no dia a dia. Em muito disto se deve a uma tolerância a crenças não científicas em casos aparentemente inofensivos. Quando alguém defende que existe um monstro no Lago Ness na Escócia, acabamos tolerando esta pessoa exótica como um louco engraçado, sem perceber o risco que este tipo de pensamento carrega. Não existe negacionismo inofensivo.

Antes de falar dos males da mentalidade negacionista cabe esclarecer que não vou defender aqui uma visão positivista da ciência. A ciência é apenas um instrumento para entendermos o mundo. Diversamente que muitos iluministas e positivistas pensavam nos séculos XVII a XIX, a ciência se mostrou insuficiente para construir sociedades justas, resolver os dilemas humanos e nos levar em direção a igualdade e a felicidade. Os exemplos de uso da ciência que causaram sofrimento, exploração e desgraça são inúmeros. Mas se você acha que o preço do conhecimento pode ser caro demais, é porque você não consegue calcular o preço da ignorância.

Devemos ser críticos ao uso da ciência como instrumento de poder, bem como as consequências éticas de tecnologias novas e seus impactos sociais. O que não significa que devemos aceitar o pensamento anticientífico. O problema ao se negar a ciência e abraçar o negacionismo é bem simples: quem faz isto esta em uma luta contra a realidade.

E o maior mérito do pensamento científico não reside nas respostas específicas acerca disto ou daquilo, mas sim em aprendermos a como investigar o mundo e não nos enganarmos. A mente humana tem uma série de inclinações, e uma especialmente perigosa é o viés de confirmação. Tentamos a valorizar mais aquilo que acreditamos estar certo, e a descartar o que achamos estar errado. O que pode nos levar a ficarmos presos a ideias falsas que acreditamos verdadeiras. O desejo de que uma ideia seja verdadeira é algo perigoso. É o primeiro passo para nos enganarmos.

Não são poucos os exemplos de pseudociência que toleramos. A ufologia, por exemplo, parece algo até divertido, fonte para bons filmes e séries de ficção. Mas ao mesmo tempo a ufologia leva facilmente a aceitação de conspirações governamentais mundiais, ou até mesmo a aceitação de que os governantes do mundo não são humanos. O mesmo vale para o seu irmão gêmeo mais radical, o terraplanismo.

Não é nada incomum que estes ufologistas acabem pensando de modo similar aos anti-sionistas, ou aos olavistas que acreditam em comunistas controlando a imprensa mundial. A aceitação de governos por detrás de governos, ocultando grandes verdades do público é um instrumento perigoso para o ódio.

Outro exemplo que podemos dar são as terapias alternativas e medicinas tradicionais. Que mal poderia haver em fazer terapia com imposição de mãos ou usar de medicina medieval como o uso de ventosas? Se tem efeito placebo, tem poder de cura real, não?

Mas além do risco de entusiastas de falsas curas menosprezarem os tratamentos da medicina baseada em evidências, a aceitação de ideias como meridianos de chi ou a cura pelo oposto leva as pessoas a não compreensão do básico da ciência médica. O que permite, por exemplo, às pessoas aceitarem facilmente que um remédio para a malária poderia ser eficiente contra uma virose.

Sem contar no clássico deslize para as teorias da conspiração. A Big Pharma quer vender remédios que não curam, para que tenhamos que tomar toda a vida. Ou privilegiam remédios caros em relação aos baratos, para aumentar o lucro. Novamente a ideia de grupos vilanescos que controlam a sociedade por meios escusos. Mais um caminho para o ódio.

Até mesmo as inocentes pseudociências da astrologia ou do misticismo quântico tem enorme potencial de prejuízo. A astrologia nos sugere a ideia de que forças além do homem podem influenciar os caminhos mais favoráveis, e que sabendo-se das conjunções favoráveis ou desfavoráveis estaremos melhores preparados para tomar boas decisões. Pensar que havia um astrólogo influente junto ao Presidente Reagan, em um dos piores momentos da Guerra Fria, ainda me dá calafrios. Era o homem mais poderoso do mundo decidindo os rumos da civilização com base em conjunções ilusórias e sugestão psicológica.

A ideia de que se agirmos de modo positivo conseguiremos atrair o sucesso é uma das piores formas de meritocracia que conheço. Caminho para criar a culpabilização da vítima, bem como o endeusamento sem crítica da elite.

E não se enganem, o analfabetismo científico atende o interesse de muitos. Conhecimento é poder, e é muito lucrativo saber mais que outros. Com um pouco mais de conhecimento se pode vender panacéias sem eficácia, usar de psicologia, hipnose e ilusionismo para simular milagres, ou até mesmo convencer que existem comunistas a beira de tomar o poder e destruir a cristandade.

O melhor remédio que podemos ter para isto é só um: o ceticismo. Para finalizar este texto que já se alonga, tentarei resumir o básico do básico para entendermos o que é ciência, e o que não é.

O primeiro ponto e o mais importante é pensar se existe alguma forma de testarmos uma ideia e termos certeza de que ela é falsa. Pense sobre que tipo de informação poderia te convencer que você estaria errado? Se não existe nada que pode mostrar para você que sua ideia esta errada, então não existe forma de realmente testar o valor prático da ideia.

O segundo ponto principal é buscar a opinião de quem discorda, e ouvir com muita atenção. Busque mais de uma fonte de informação, e busque mais ativamente as informações de quem discorda de você. No mínimo isto te fará entender melhor a sua ideia. E ainda tem o potencial de te mostrar seu erro.

Isto vale até para fontes científicas. Até mesmo artigos científicos. Se tem alguma dúvida acerca de como um artigo científico pode ser enganador, sugiro pesquisar sobre o Prêmio IgNobel. Ou lembrar das centenas de estudos que “comprovavam” a eficácia da cloroquina para Covid.

Seja especialmente crítico com as ideias que você deseja que seja real. Se você tem uma doença séria, e alguém tem uma solução milagrosa, desconfie. Desconfie também daquele conhecimento que te faz sentir especial, parte de um grupo que detém o verdadeiro conhecimento. Somente os criacionistas entendem que a biologia evolutiva é uma invenção para destruir a cristandade? Desconfie.


Desconfie também de ideias que te causam emoções fortes. A revolta e a repulsa são instrumentos poderosos para matar nosso espírito crítico. Quando acreditamos estar em uma luta do bem contra o mal, devemos parar e repensar. Podemos estar sendo manipulados.


E busque sempre saber qual é a visão da comunidade acadêmica. Da ciência “tradicional”. Se o cientista que defende a ideia afirma que a comunidade acadêmica é preconceituosa ou o objeto de estudo demanda métodos não convencionais para a ciência, o mais provável é que a ideia dele seja nada científica.


Aniello Greco
Enviado por Aniello Greco em 01/07/2022
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